Ana Cristina Roldão, da FunBrasil, segue de perto os passos do pai, que dedicou 40 anos de sua vida ao plantio da árvore nacional
Ana Cristina fiscaliza o crescimento das mudas às margens do rio Capibaribe |
Dos cinco filhos de Roldão de
Siqueira Fontes, apenas a caçula saiu ao pai. Ana Cristina herdou do professor
a paixão pelo pau-brasil e a imensa paciência para contar, recontar e
redesenhar a história da árvore nacional. Enquanto o pai viveu, ela o acompanhou.
Ele à frente, ela à sombra, ambos semearam, plantaram e ensinaram a manter
bosques carregados de simbolismo por todo o Brasil.
Durante os 40 anos dedicados a
promover o conhecimento sobre o pau-brasil, o professor Roldão distribuiu cerca
de 2 milhões e 700 mil mudas da espécie, conhecida pelos cientistas como
Caesalpinia echinata. Desde 1996 – quando ele se foi – Ana Cristina toca
sozinha a Fundação Nacional do Pau-Brasil (FunBrasil), em Glória do Goitá,
Pernambuco. Com a esperança confessa de um dia despertar o interesse dos netos
gêmeos, Ana Beatriz e João Victor, hoje com 4 anos, e transformá-los também em
plantadores de florestas.
Nascida Ana Cristina de Siqueira
Lima, ela acabou adotando o nome “artístico” pelo qual a mídia sempre a tratou,
numa referência ao pai: Ana Cristina Roldão. Aprendeu a cuidar de roças e
criações no Colégio Agrícola de São Bento, onde ele lecionava. “Sou capa gado
formada, como fala o povo daqui”, comenta, numa alusão ao seu conhecimento
prático, pé no chão. E ainda se vira com a papelada da FunBrasil, que ajudou o
pai a criar em 1988.
Aos 59 anos, com a filha única
criada e casada, morando em Recife, Ana Cristina divide-se entre o cuidado
cotidiano com a irrigação das mudas de árvores nativas; a coordenação dos
convênios estabelecidos com prefeituras e empresas para reflorestamentos e o
acompanhamento dos visitantes, tanto nas trilhas interpretativas do bosque que
rodeia a sede da fundação, como por entre os objetos e as fotos do Museu do
Pau-Brasil, ali vizinho.
Capaz de se multiplicar sem
perder o fio da meada, Ana Cristina só lamenta a falta de recursos para fazer
mais: mais mudas, mais campanhas educativas, mais plantios. Em sua gestão à
frente da fundação, ela diversificou, passando a trabalhar com outras 42
espécies de árvores nativas, além do pau-brasil, como os ipês roxo e amarelo, a
sucupira, o cajueiro, o angico, o angelim e o jatobá. Em alguns plantios,
acrescenta mudas produzidas em outros viveiros para chegar mais perto da
diversidade original das matas.
Vale lembrar que, no Nordeste, a
Mata Atlântica original já ocupava uma faixa bem mais estreita junto ao
litoral, se comparada ao domínio da floresta na região Sudeste. E o
desmatamento também foi mais prolongado – desde o século XVI – e intenso,
sobretudo para exportação de madeiras – como o pau-brasil – e para abertura de
engenhos e cultivo de cana-de-açúcar. Por isso, restam hoje apenas fragmentos
pequenos e pulverizados no mapa, quase todos em propriedades rurais ou em áreas
públicas e não protegidos em unidades de conservação.
Sementes de pau-brasil colhidas no bosque da fundação, para produção de mudas |
Cerca de 50 espécies nativas de madeira de lei são cultivadas no viveiro de Glória do Goitá (PE) |
Irrigação diária das mudas de árvores nativas da Fundação Nacional do Pau-Brasil. |
Assim, toda e qualquer mudinha
que cresça e “vingue”, como se diz por lá, é uma vitória. Justifica a atenção redobrada
e o apelido atribuído por Ana Cristina às suas plantas: “Chamamos de filhotas,
não só as de pau-brasil, mas todas as mudinhas. São as filhas que nós plantamos
com cuidado e dedicação. E esse amor que a gente coloca, a gente tem a
pretensão de que permeie para quem pegar nelas. Que eles as tratem bem, como
nós as tratamos”, explica. “Espero, em Deus e na força da natureza, que mais
pessoas se sensibilizem e trabalhem na restauração e no retorno das grandes
árvores, porque são elas que dão equilíbrio ao Planeta”.
No princípio, o trabalho de
divulgação realizado por Roldão de Siqueira Fontes tinha motivos históricos.
Como professor de História e Geografia do Brasil no antigo Colégio Agrícola de
São Bento, ele se indignava com o desconhecimento da população a respeito da
árvore que deu nome ao país.
O colégio técnico pertencia à
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), localizada no bairro Dois
Irmãos, em Recife. Nos jardins de acesso ao prédio, existiam algumas árvores de
pau-brasil, pelas quais o professor passava diariamente. No início dos anos
1970, ao descobrir que a espécie estava ameaçada de extinção, ele começou a
coletar as sementes e formar mudas em latinhas e outros recipientes
disponíveis, para distribuir aos alunos e seus familiares.
A iniciativa tomou vulto em 1972,
quando o então reitor da UFRPE, Erasmo Adierson de Azevedo, aderiu à ideia do
professor de promover uma campanha nacional em defesa do pau-brasil. “O reitor
foi a Brasília de avião para o lançamento da campanha, mas papai carregou um
caminhão com 10 mil mudas e foi de Pernambuco a Brasília distribuindo
pau-brasil pelo caminho”, conta Ana Cristina.
A abordagem preferida do
professor ainda hoje é utilizada por sua filha, com os visitantes da fundação e
do museu: “Você já viu um pau-brasil, a árvore que deu o nome ao Brasil e aos
brasileiros?”
A imensa maioria responde “não”.
E ela emenda com considerações e casos, sempre em busca de adesões para suas
campanhas anuais de plantio de bosques. Acaba “fisgando” voluntários com sua
fala pontilhada de paixão. Mesmo quando o público a que se dirige é um grupo de
jovens semi-internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) de
Recife. Durante esta reportagem, entre a palestra inicial e o passeio com os
ex-infratores pela trilha do pau-brasil, Ana Cristina arrumou uma meia dúzia de
interessados em ajudá-la a plantar.
O pau-brasil já foi uma árvore
que alcançava 40 metros de altura e 1,5 metro de diâmetro no tronco. Hoje já
não existem exemplares tão grandes. Ocorria naturalmente do Rio de Janeiro ao
Rio Grande do Norte, em uma faixa litorânea de Mata Atlântica com largura entre
80 e 150 quilômetros a partir da costa.
Ana Cristina dá uma aula sobre o pau-brasil a uma turma de semi-internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase), de Recife |
Jovem árvore de pau-brasil, com cerca de 10 a 15 anos de idade |
Do século XVI ao XIX, a madeira
foi explorada principalmente para tingir tecidos nobres. O cerne do tronco da
árvore adulta produz uma tinta de cor vermelho-carmesim, muito valorizada nos
séculos passados, antes da descoberta do processo de fabricação de corantes
sintéticos (1856). A tonalidade é semelhante à da tinta de outra árvore chamada
brazil, originária da Ásia, usada antes do Descobrimento. O nome provavelmente
foi emprestado dessa outra espécie, que era mais escassa.
Hoje, a principal exploração –
ilegal – é para a construção de arcos de violino. Há notícias de algumas
tentativas de cultivar o pau-brasil para abastecer os fabricantes
especializados em instrumentos musicais, mas nenhuma experiência foi bem
sucedida, por enquanto, embora a FunBrasil esteja empenhada em fazer alguns
testes.
Por se tratar de uma leguminosa,
a árvore não é muito exigente quanto ao solo. “Basta garantir a rega uma a duas
vezes por semana enquanto a muda é pequena e ela vai bem em qualquer terreno”,
garante Ana Cristina Roldão. O problema é o crescimento extremamente lento da
árvore e a formação – mais lenta ainda – da madeira vermelha do cerne, que só
aparece após o décimo ano.
As flores de pau-brasil têm 5
pétalas, sendo 4 totalmente amarelas e uma “pincelada” de vermelho. O fruto é
uma vagem com espinhos, contendo de 3 a 6 sementes, em média. Quando a vagem
seca, ela se abre e se retorce com tal violência que lança longe as sementes.
“O objetivo é semear as novas árvores o mais distante possível da matriz, na
renovação natural da mata. Algumas plantas têm sementes com cerdas, que agarram
no pelo dos animais e só caem lá adiante, e outras usam esse recurso, conhecido
como deiscência”, esclarece Ana Cristina. A rigor, o termo técnico é
“deiscência explosiva”, o que dá uma ideia do poder de lançamento da pequena cápsula
vegetal.
O pau-brasil também é chamado de
arabutã, ibirapitanga, muirapiranga, pau-pernambuco, pau-vermelho e
pau-de-tinta. Consta da Lista Oficial das Espécies da Flora Brasileira
Ameaçadas de Extinção, elaborada em 2008 pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ainda existem alguns
exemplares de grande porte nos remanescentes florestais do Sul da Bahia, muito
visados por traficantes, pois o corte está proibido, tanto pela legislação
brasileira, como pela Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da
Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites).
Já a maior concentração de
árvores de pau-brasil plantadas fica na Estação Ecológica do Tapacurá, junto ao
campus da Universidade Federal Rural de Pernambuco, com mais de 100 mil
exemplares da espécie, metade dos quais fornecidos pelo professor Roldão de
Siqueira Fontes, em meados da década de 1970.
Neste verão, a Fundação Nacional
do Pau-Brasil estabeleceu um convênio com a Secretaria de Recursos Hídricos de
Pernambuco para restaurar a mata ciliar de ambas as margens do rio Capibaribe,
justamente a partir do rio Tapacurá, que dá nome à Estação Ecológica.
São 30 mil mudas de 50 espécies
de Mata Atlântica, entre as quais estão numerosos exemplares de pau-brasil. O
plantio conta com recursos do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro) e,
claro, com a persistência de Ana Cristina Roldão em vencer o capim alto, as
formigas, a escassez de chuvas e o fogo acidental (ou criminoso), até as “filhotas”
se transformarem em árvores e sobreviverem por conta própria.
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