Famílias em abrigos improvisados, entulhos espalhados e pontes quebradas fazem parecer que desastre no Litoral do Paraná ocorreu há poucos dias
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Terreno devastado prejudica a agricultura |
A julgar pelo cenário de devastação, parece que foi ontem. Mas a verdade é que está prestes a fazer um ano que chuvas torrenciais provocaram desastres no Litoral paranaense. Famílias em abrigos improvisados, entulhos espalhados por vários quilômetros e pontes quebradas continuam fazendo parte da paisagem. A falta de preparo para lidar com catástrofes e a burocracia fizeram com que apenas algumas poucas ações de reconstrução tenham sido realizadas até agora.
O plano de trabalho para definir quais obras deveriam ser executadas foi finalizado somente em novembro – oito meses após a tragédia. Antes da conclusão do projeto, uma sequência de reuniões, análises e alterações aconteceu, atrasando o início das obras. O governo estadual reconhece que por muito tempo foram executadas apenas “ações de resposta”, com soluções que visam a evitar mais danos, atender a casos de riscos de morte ou que ofereçam o mínimo de condições de subsistência às famílias que ficaram sem casa. Assim, basicamente, só obras emergenciais foram realizadas nos primeiros meses.
O vai-e-vem até a definição do plano de trabalho impediu que fosse aproveitada uma brecha na lei que existe justamente para agilizar obras em áreas atingidas. Em casos de desastres, as autoridades podem decretar situação de emergência ou estado de calamidade pública e, assim, ficam liberadas de alguns entraves burocráticos.
O prazo especial desses decretos só vale, porém, para aquisições feitas nos primeiros 180 dias após a tragédia. E, no caso paranaense, passaram-se seis meses sem que o grosso das compras – que envolve a reconstrução de pontes de estradas municipais e a construção de casas para os desabrigados – fosse realizado.
Um exemplo é a retirada de material lenhoso das áreas devastadas: a seleção da empresa que faria o serviço foi iniciada dentro do prazo que permitia a licitação simplificada, mas, como demorou para ser concluída, foi necessário recomeçar o processo dentro do modelo convencional.
Uma exceção foi a reconstrução da ponte na BR-277. Apesar de ser uma obra de engenharia mais complexa que as de estruturas de ligação das rodovias estaduais e das estradas municipais, a ponte foi concluída em apenas cinco meses. Dois fatores pesaram nesta agilidade: o fato de a obra ser de responsabilidade da iniciativa privada (concessionária da rodovia) e a falta que a ponte fazia para milhares de pessoas que precisam fazer o trajeto até o Litoral.
Algumas outras obras de reconstrução já estão prontas também – como as pontes das rodovias estaduais. Ações preventivas e educativas da Defesa Civil, além de um estudo sobre áreas de risco no Litoral, foram realizadas. O curso dos rios que cortam o distrito rural de Floresta – que fica parte em Paranaguá e parte em Morretes – também está sendo refeito.
Pedras e toras gigantes que rolaram dos morros, porém, ainda estão por lá. A reconstrução de 22 pontes em estradas municipais ainda não tem data para começar. Algumas licitações estão em curso e outras nem começaram. O governo federal liberou R$ 15 milhões. O recurso chegou no fim de maio. Depois de comprovada a aplicação correta do dinheiro, mais R$ 10 milhões devem ser depositados.
Faltou aprender com a lição, diz especialista
As lições que poderiam ser assimiladas com as enxurradas de março não foram totalmente aprendidas, na opinião do coordenador do Centro de Apoio Científico a Desastres (Cenacid) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Renato Lima. “Para estudar o caso, era preciso agir no começo. É como tentar saber um ano depois como uma doença se manifestou. Se não acompanha os sintomas, mede a febre de tempo em tempo, muito se perde”, exemplifica.
Para o professor, o Paraná desperdiçou uma grande chance de se preparar melhor para outras eventuais tragédias. “O desastre no litoral demonstrou as nossas fragilidades e a necessidade de ações sérias na área de prevenção e preparação. Teve um prefeito que disse que não sabia que aquele desastre podia acontecer. Penso que, para algumas autoridades, ainda não ficou claro que o que ocorreu no Litoral pode acontecer em vários lugares”, comenta.
Mas Lima vê pontos positivos. Ele ressalta que foram feitos alguns mapeamentos sobre áreas de risco. Além disso, o desastre pode ter servido para alertar que o investimento público na preparação e prevenção em desastres é necessário. Um termo de cooperação entre o governo estadual e o Cenacid foi assinado no ano passado, permitindo que técnicos universitários colaborem no enfrentamento de situações de emergência.
O capitão Romero Nunes da Silva Filho, chefe do setor operacional da Defesa Civil do Paraná, destaca que já foram feitos levantamentos para indicar áreas preferenciais de atuação, como ruas que mais alagam e morros mais suscetíveis a desmoronamento no Litoral. Foram feitos, ainda, exercícios de simulação de evacuação com duas comunidades. Além disso, o número de estações pluviométricas – que monitoram o volume das chuvas – aumentou de 14 para 20.
Para Silva Filho, um dos pontos de destaque na ação é a elaboração de um protocolo de atendimento. Agora, em caso de tragédia em qualquer parte do Paraná, há uma lista prévia de ações com divisão de tarefas entre vários órgãos governamentais.
Atrasos
Governo culpa a burocracia
“Foi feito o que dava para fazer”. Assim definiu o secretário estadual de Infraestrutura e Logística, José Richa Filho, o encarregado de gerenciar as ações no Litoral paranaense. Ele admite que houve atrasos, mas coloca a culpa na burocracia. O fato de técnicos e gestores terem acabado de assumir funções, já que a troca do comando do governo estadual havia acontecido 70 dias antes das enxurradas, também teria provocado mais lentidão nas ações, segundo ele. Richa Filho também afirma que houve “conflito de demandas” com as prefeituras. Havia muita discussão sobre como aplicar os recursos do tesouro estadual e do governo federal. Alguns municípios teriam pedido para administrar o dinheiro. “Mas o Ministério da Integração Nacional determinou que a verba fosse gerenciada pelo governo estadual”, declara. O secretário também reforça que os recursos disponíveis são insuficientes. Um levantamento indicou a necessidade de R$ 89 milhões para as obras, mas a União concordou em repassar apenas R$ 25 milhões, divididos em duas etapas. O governo estadual destinou R$ 20,5 milhões. Ainda não está definido como será feito o restante das obras que não dispõem de recursos financeiros.
Terreno devastado prejudica agricultura
Só há um capão de mato no lugar onde estava a casa do agricultor Carlos Pereira dos Santos. Pedaços de madeira e tijolos foram parar a mais de 30 metros de distância com a enxurrada. A família passou dois dias na mata até ser resgatada. “Pobre é assim, só com desgraça pra andar de helicóptero”, brinca a filha Ana Paula. Hoje, eles moram em casas que antes serviam de asilo para idosos. Acostumados à lida da roça, o agricultor e as filhas não conseguem trabalho na cidade. A família vive com um salário mínimo, de aposentadoria, e a cesta básica que recebe. Quase todos os dias, de ônibus, Santos percorre 28 quilômetros para ir até a terra em que plantava.Ele ainda tentar cultivar aquele terreno devastado, cheio de entulhos e pedras gigantes.
Casa dos sonhos sob a água
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Casa dos sonhos sob a água (Marco André Lima/ Gazeta do Povo) |
Depois de 17 anos guardando dinheiro para comprar a casa própria, o eletricista João Batista Leite Campos morou apenas um ano no imóvel tão desejado. Quase nada pôde ser salvo da enxurrada, que trouxe uma árvore inteira para o lugar em que era a lavanderia de sua casa. Além de falta de informação – “nada foi conversado ou discutido em conjunto” – ele reclama do tamanho da casa que deve ganhar em Antonina. Batista garante que tirou as medidas do sofá de dois lugares, comprado em uma loja de usados, e que o móvel não caberá na nova sala.
Isopor para tentar manter a privacidade
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Isopor para tentar manter a privacidade (Marco André Lima/ Gazeta do Povo) |
A auxiliar de serviços gerais Sandra Sérvolo Veloso escapou duas vezes de se ferir com os desmoronamentos. Primeiro, a casa em que morava com o marido e os dois filhos foi derrubada por deslizamentos de terra. Depois, ela procurou abrigo a 200 metros de distância, na casa da sogra, que também veio abaixo no dia seguinte. “Trabalho perto e passo todos os dias por lá. Ainda não acredito no que aconteceu”, diz.
Absolutamente todos os parentes de Sandra, em Antonina, ficaram sem ter para onde ir. As 25 pessoas foram levadas para abrigos improvisados. O pai dela, Celso Sérvolo Veloso, diz que já revirou várias vezes os entulhos da casa onde morava, ao lado da filha, para ver se encontrava lembranças ou produtos de valor. Impedido de reconstruir a casa – por estar em área de risco – ele espera uma solução para ter novamente um lar.
Por enquanto, as famílias vão improvisando do jeito que dá. Sandra, por exemplo, dividiu com isopor o corredor do local em que vive com mais uma família. Tem sala, cozinha, banheiro e um quarto. Apesar das dificuldades, a auxiliar acredita que está bem instalada e agora vive a expectativa de morar na casa nova. “Parece legal, mas será pequena”, diz.
Cronologia
Relatório do governo estadual mostra o caminho da burocracia até o início das ações:
Março – resgates e abrigamento. Assinatura de decretos de situação de emergência e estado de calamidade pública. Início de obras emergenciais. Elaboração de um plano de trabalho.
Abril – envio do plano de trabalho ao Ministério da Integração Nacional.
Maio – ajustes no plano de trabalho para que contenha apenas obras emergenciais.
Junho – análise do plano de trabalho pelo governo federal.
Julho– retirada de material lenhoso, finalização dos trechos de acessos às comunidades, recuperação de pontes e cabeceiras em rodovias estaduais.
Agosto –técnicos do Ministério de Integração Nacional visitam áreas devastadas.
Setembro – novo ajuste no plano de trabalho para adequá-lo à verba federal.
Outubro – envio do plano de trabalho alterado para aval do ministério.
Novembro – aprovado o plano de trabalho, início das licitações para a contratação de projetos e obras.
Katia Brembatti para Gazeta do Povo